Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

domingo, 27 de outubro de 2013

Elogio à preguiça



Foi certo frade, de quem a história não se deu sequer ao trabalho de registrar o nome, que surgiu com a indefensável doutrina: a preguiça não deveria ser considerada um vício, mas uma virtude. A tese seria debatida num sínodo convocado para que se estabelecesse o rol definitivo dos pecados capitais. Compareceriam os mais brilhantes teólogos e doutos em assuntos de fé.
O frade preparou seus argumentos: o pecado, acreditava ele, é algo que se comete ativamente, um movimento do pecador no mau caminho. Assim, não poderia ser pecaminosa a preguiça cuja essência é inércia. Por suas características, ela seria antes um veículo precioso por favorecer  a reflexão e a contemplação - exercícios espirituais de reconhecido valor. Além disso, a preguiça teria o condão de afastar-nos de alguns indiscutíveis males: os que muito laboram, por exemplo, acabam tornando-se avaros dos frutos do seu trabalho; aqueles que realizam grandes obras, envaidecem-se dos próprios feitos; os que pretendem muito conquistar, não raro, rendem-se à ira. A preguiça, pelo contrário, é desapegada, humilde e pacífica, por sua própria natureza. Para concluir, o religioso citaria o episódio das irmãs de Lázaro: a defesa de Jesus a Maria que ociosamente o escutava, em detrimento dos apelos da laboriosa Marta.
Enquanto se preparava para a contenda, o frade antecipou os longos e desgastantes debates que, seguro, arrastar-se-iam por semanas, quiçá por meses. Cansado de antemão, concluiu que mais eloquente que seus discursos seria seu exemplo. E, por indolência, não compareceu aos feitos.
Repousava despreocupadamente enquanto, ante sua revelia, a preguiça era proclamada a mãe de todos os vícios e o seu defensor era declarado herege.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Aula de Anatomia



Só agora descobri
que o vazio no meu peito
se chama mediastino.

E que essa dor que eu sinto,
que me aperta o coração,
não é tristeza.
É angina.

Por que tudo se explica
no corpo,
pelo corpo,
para o corpo.

Corpo, corpo,
porco corpo.
Invólucro oco.
Repleto do vazio
de si mesmo.

(A alma resta a uns poucos:
aos poetas,
aos santos,
aos loucos).