Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Sob(re) as máscaras

 


Fonte: Pixabay


Enfim… o carnaval! Conheço – todos devem conhecer – quem passe a vida em contagem regressiva por essa época em que é permitido vestir uma fantasia – ou despi-la – e botar o bloco na rua. Carnaval é tempo de exceção. Uma dose de desordem na ordem dos dias. Tempo de subversão das convenções, de relaxamento de imposições e posições sociais, de suspensão das regras. Como se houvesse uma lei não escrita e a todos imposta onde estivesse expresso que àqueles que andarem na linha o ano todo será dado o direito a cinco dias anuais de desvio. E nessa bem-vinda pausa, lá está Sua Majestade, habitualmente tão cioso de seu vetusto lugar no mundo (que palavras como vetusto e cioso foram feitas para uso Real), lá está ele no meio do povo, vestido de bobo da corte, comendo farofa com a mão, liberto do peso da coroa (que o poder, quando levado a sério, também tem seus ônus e não apenas benesses), e a coroa, a vemos na cabeça do bobo da corte. Por cinco dias apenas. Depois, voltamos à ordem. É claro que no país do carnaval a coisa pode ser diferente pois às vezes o bobo da corte é o próprio rei. Impossível não lembrar das palavras do diplomata Carlos Alves de Souza, erroneamente atribuídas ao General De Gaulle: “Le Brésil n’est pas un pays serieux!”. Não, o Brasil não é um país sério.

Nunca faltou quem considerasse o resto do ano apenas o tedioso intervalo entre um carnaval e o seguinte – com direito a tantos carnavais extemporâneos quantas sejam as semanas do ano, para ajudar a passar o tempo. Da minha parte, sempre fui mais do Bloco do fica em casa, oportunidade para pôr em dia os filmes do Oscar. Mas depois de dois anos em casa, estamos nós nos perguntando que fim levou a festa? E até mesmo os mais carrancudos militantes antifolia – dentre os quais, registre-se, não me incluo – têm sentido falta do carnaval, nem que seja para reclamar dele.

Neste carnaval, pelo segundo ano seguido (ou terceiro, que já perdi a conta) nem o bobo, nem o rei: quem ostenta a coroa – que aliás lhe dá nome – é o Coronavírus. E a folia de novo foi adiada. Não vai ser agora que veremos as ruas tomadas por gente em festa. Se por um lado serão postergados (até quando?) os grandes festejos públicos, por outro, multiplicam-se os carnavais particulares, como aquelas comemorações de outra época, os bailes de mascarados de inspiração veneziana.

E por falar em máscaras, por causa do vírus, todos nos vimos forçados a desfilar com elas, fora do carnaval. Máscaras nada divertidas, leia-se, com a nobre finalidade de proteção (própria e dos outros), embora se possa argumentar que toda máscara é essencialmente de proteção, mesmo aquelas que são adereços de fantasia. Lembremos que fantasiar tem duas acepções. Em um sentido abstrato, fantasiar significa devanear, sonhar, realizar imaginariamente alguma coisa. Por outro lado, a forma pronominal do verbo – fantasiar-se – tem um sentido concreto e significa vestir-se com uma roupa não habitual ou convencional, disfarçar-se. Nessa ascepção, a máscara é parte essencial da fantasia, pois protege o rosto e, com ele, a própria identidade de quem a usa. É assim que, por exemplo, um cidadão de bem, devidamente fantasiado, pode realizar suas mais loucas fantasias, sem o risco de ser reconhecido por um colega de firma, um vizinho do condomínio ou um confrade da igreja – todos eles também igualmente mascarados para os mesmos orgiásticos fins. Protegida a identidade pela máscara, o que era apenas fantasia – uma ideia contrária às leis ou convenções sociais – pode realizar-se concretamente sem que o indivíduo sofra as consequências ou sanções por sua ação. Não é por outro motivo que os vilões e heróis da ficção estejam, quase sempre, mascarados. Aliás, um outro modo de realização da fantasia é a ficção que nada mais é do que uma forma concreta e compartilhável de fantasia. A graça das obras de ficção (sejam os filmes, sejam os livros) está em nos identificarmos com a fantasia de quem as criou. E é da ficção que vem este valioso aprendizado: quando alguém posa publicamente de herói, talvez esteja apenas usando uma máscara para ocultar vilanescas intenções (qual era mesmo aquele filme em que um juiz corrupto, celebrado como uma espécie de super-homem, cometia sistemáticas ilegalidades com políticos e escusos fins?)

Fica sempre a pergunta: quem é a pessoa por trás da máscara? Lembremos, a palavra pessoa deriva persona que era a palavra usada para designar as máscaras usadas pelos atores no teatro clássico..Afinal, a máscara esconde ou revela? Ao ocultar a parte mais visível da personalidade ela não acaba mostrando algo que, no feijão com arroz dos dias, se mantém oculto por força das leis, das convenções ou simplesmente das conveniências? Estaria, nesse sentido, o mascarado mais desnudo que o cidadão de bem? Ou seria o cidadão de bem, cordial e honesto, esse sim, uma máscara ostentada ano afora, razão de haver bandidos fantasiados de farda, criminosos de juristas, um palhaço de presidente…? As máscaras mostram o que elas camuflam, seu oposto. E as máscaras de proteção contra o Covid, o que revelam sobre o caráter, a inteligência (ou a falta deles) de quem não as usa?

Muitas perguntas para um carnaval sem folia. Enquanto ele não vem, permito-me o carnaval em pequenas doses: ficção de cada dia. Em espera, fantasio um outro país, que volte a levar a sério os seus graves problemas e trate com a merecida dignidade seu povo. Isso sim seria motivo de festa nas ruas, não seria? Deixemos esse carnaval em suspenso. Por alguns meses, ao menos. Até, outubro ou novembro, quem sabe… E fiquemos com esse poema que Fernando Pessoa, ou Persona, escreveu sob a máscara de Álvaro de Campos:

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre a criança,

O passado que foi

A criança.

Depus a máscara e tornei a pô-la.

Assim é melhor,

Assim sou a máscara.

E volto à personalidade como a um terminus de linha.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Carlos, a pedra e o caminho

Imagem: PDPhotos por Pixabay

Há um século, ao longo de cinco dias naquele fevereiro de 1922, aconteceu a Semana de Arte Moderna, marco simbólico do movimento que rompeu com toda uma série de velhas convenções artísticas e culturais. E esta crônica deveria ser sobre o centenário do movimento modernista que, entre muitos méritos teve o de promover o reconhecimento e a valorização da cultura nacional (coisa que pseudonacionalistas de hoje parecem abominar), mas no meio do caminho tinha uma pedra.

Tomo de empréstimo o verso inicial do mais polêmico poema do modernismo o qual rendeu a seu tímido autor diversos louvores e apedrejamentos públicos que ele coligiu com a burocrática paciência de poeta-funcionário no livro Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema. Críticos já discorreram fartamente sobre as múltiplas interpretações desse poema, lembrando que a pedra metaforiza qualquer forma de obstáculo, impasse ou bloqueio, tornando-se um verso incontornável (perdoem-me o trocadilho) que de tão célebre  se converteu numa espécie de dito popular, significando, portanto, mais que mero objeto rochoso com o qual alguém se depara. No mesmo sentido, caminho representa metaforicamente qualquer coisa que se tenha planejado e não necessariamente o percurso ou trajeto físico do ponto A ao ponto B. Assim, eu poderia ter começado esta crônica dizendo que planejava escrever sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, mas algo impediu que eu o fizesse, de onde me socorreram o poeta de Itabira e seu rochedo metafórico: No meio do caminho tinha uma pedra, deixando as perguntas: que pedra? qual caminho? Mas aqui pedra e caminho têm um sentido bem mais concreto.

Eu ordenava mentalmente a manhã de domingo, entre o pão e o queijo, entre o trabalho e a preguiça, entre escrever a crônica e assistir a uma série, quando, no meio do caminho, a pedra. Literalmente pedra. Literalmente caminho. Entre o rim direito e a bexiga. Anunciou-se pela dor, velha conhecida que de repente me mandava um oi sumido, quanto tempo? Vinte anos, de fato, desde que fomos apresentados, no meu segundo semestre de Psicologia quando a batizei de Adélia, em singela homenagem a uma professora cujas aulas divertidíssimas me causavam cólicas de tanto rir. Mas esta outra Adélia, que do nada se anunciava com alarde (parente em visita surpresa), não tinha a menor graça. Visitante inoportuna e inesperada. E porque eu estava sozinho e como não tinha analgésico, tive de aturar seu inconveniente estardalhaço até que, cansada, desse uma trégua para que eu pudesse providenciar o poético remédio: Butilbrometo de escopolaprina. Repita esse nome em voz alta e diga se é ou não um decassílabo perfeito? Mas, talvez, apenas quem já teve uma dessas cólicas – comparam-nas à dor do parto – saiba apreciar adequadamente a poética sonoridade dessas sílabas, o que me leva de volta à pergunta: o que é poesia? E o que ela se tornou a partir daquela Semana de Arte Moderna, ocorrida há um século, se até No meio do caminho tinha uma pedra – vejam que absurdo! passou a ser rotulado como tal? O poema de Carlos D. foi frequentemente citado pelos críticos do modernismo como um exemplo da decadência e antilirismo do movimento, mas me desvio do assunto como se contornasse um obstáculo.

Não era mais dessa pedra que eu falava. Nem desse Carlos. Volto a minha manhã de domingo e cito a Adélia (Prado, não a pedra): De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo, outros versos aos quais recorro para dizer que, às vezes, pedra é pedra e caminho é caminho ou, para citar Freud, querendo afastar conotações fálicas para seu vício: Às vezes um charuto é apenas um charuto. Devidamente medicado, pude esperar até o dia seguinte quando me vi diante de Carlos P., urologista, que a partir de uma tomografia constatou o que eu visceralmente intuía: tinha uma pedra no meio do caminho.

Se eu começasse esta crônica dizendo que No meio do caminho tinha uma pedra de 6 mm exatos, talvez um leitor menosprezasse meu desvio e me tomasse por exagerado, pois a um obstáculo desse tamanho não se deveria dar, literalmente, a menor importância. Isso porque temos péssimo hábito de subestimar as pedras no caminho dos outros. Mas penso que cada qual sabe o quanto incomodam as pedras em seu sapato (ou rim, conforme o caso) e estas não se medem pelo tamanho, mas pelo inconveniente que causam e pelo quanto nos desviam do nosso planejado caminho. Por exemplo, naquela segunda-feira eu me dedicaria à mais antipoética das missões burocráticas incumbidas ao funcionário-poeta que também sou: a minuciosa revisão de um ato normativo, trabalho que requer, como se pode imaginar, o cuidadoso policiamento das palavras, olhá-las com desconfiança de todos os ângulos imagináveis, prender os significantes em rígidas cadeias sintáticas e semânticas para evitar qualquer desvio de significado, ou seja, o exato oposto da tarefa de um poeta. Eu deveria apresentar o resultado desse trabalho ao Sr. Carlos A. (o novo diretor, que ainda não tinha entrado nessa história), mas, como já disse, aconteceu-me a pedra. E poucas horas depois eu aguardava Dr. Carlos P. na sala de cirurgia.

Assim é a vida, num dia você faz planos, no outro a pedra. Se eu imaginasse esse desenrolar teria me preparado para a ocasião, teria me vestido bem, para me despir mais apropriadamente, teria passado um perfume ou aparado os pelos, da barba, ao menos, para causar melhor impressão. Na asséptica sala de cirurgia se ensaiava um evento. Cinco pessoas (por que tantas?) esperávamos o Dr. Carlos P. Deitado, minha nudez provisoriamente velada por um modesto lençol, eu me perguntava quem seria o protagonista do espetáculo. Eu? O cirurgião? A pedra? Enquanto o esperava, antes que o anestesista me colocasse em meu devido papel de mero objeto cênico, eu ouvia uma das coadjuvantes narrar em detalhes seu intenso fim de semana regado a muito álcool (não em gel, registre-se) devidamente resfriado num copo térmico Stanley e nisso eu torcia mentalmente para que o papel dessa auxiliar, provavelmente de ressaca, fosse bem, bem coadjuvante mesmo, de preferência, que ela sequer chegasse perto de Adélia e de suas adjacências, menos preocupado eu estava com a pedra que com o caminho que ela tinha pela frente, entenda-se. E tentava exercitar a meditação, concentrando-me em respirar e buscando aquele caminho do meio de que fala o zen budismo, forma de se distanciar do espetáculo tragicômico do pensamento e das coisas do mundo.

Correu tudo como o planejado, dizia Dr. Carlos P., horas depois quando, já no quarto, me entregou Adélia: um belo cristal de oxalato de cálcio no qual creio ter visto certos traços meus, mas pode ter sido efeito da anestesia. Na semana que vem, retiramos as outras duas, que eu havia esquecido de dizer que a tomografia revelou que Adélia tinha duas irmãs, adormecidas no mesmo rim, eram trigêmeas (ou trigemas) e era aconselhável arrancá-las de seu sono mineral e renal antes que despertassem por si mesmas e se pusessem no meio do caminho. Hilda e Cecília, batizei as outras duas.

Hilda prometia brevidade, mas guardava secretos venenos: Nela despenco: pedra mórula ferida. / É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. (Hilda Hilst). Cecília também alertava para sua enganadora suavidade: Eu vi as pedras nascerem, / do fundo do chão descobertas./ Eram brancas, eram róseas,/ – tênues, suaves pareciam, / mas não eram. (Cecília Meireles). Melhor mesmo removê-las.

Na semana seguinte, mesma cena, outros personagens, salvo por mim mesmo e pelo Dr. Carlos P. E já que eu sabia o que me esperava, poderia ter me preparado melhor, ter passado um perfume, me aparado, etc., mas a intimidade adquirida no primeiro encontro me deixou meio relaxado, como esses namorados que com pouco tempo se mostram relapsos. Correu tudo como planejado, aliviou-me o Dr. Carlos P., quando me dava alta.

Resumo da história: Carlos são muitos, como são muitas as pedras, assim como as Adélias que podem causar cólicas de rir ou de rim, no último caso, quando pedra é pedra mesmo, como já dizia a Adélia (Prado, não a pedra, repito). Dr. Carlos P. livrou-me das pedras (literais, não metafóricas) que ficaram no meio do caminho (metafórico e literal) entre mim e o antipoético trabalho que deveria entregar ao Sr. Carlos A., antipoético, aliás como o poema modernista daquele outro funcionário público, Carlos D., publicado originalmente em mil novecentos e lá vai pedrada.

Me recupero muito bem, obrigado e compartilho a recomendação do Dr. Carlos P.: água, muita água, que água mole em pedra duraevita a formação de cálculo (o que é uma solução, e não uma rima, mas isso é outro poema).

Deixo, por fim, esses versos que escrevi há alguns anos e que fizeram parte da exposição Poesia Hoje, no Museu da Língua Portuguesa, em 2015:

Zen


No meio

da pedra

tinha

um caminho.


Tinha

um meio

no meio

da pedra.


Um caminho

do meio

no meio

da pedra.