Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

sábado, 1 de agosto de 2015

Afrodite, ou as bodas da deusa


Fora, havia cantos, e fogos e festa. Dentro, um silêncio brando, um sol de trevas. Sorria, talvez, e quem não a conhecesse teria a impressão de que era ou estava feliz. Mas ninguém a conhecia. Por isso o estranhamento quando, no meio da celebração, deram por sua ausência. E passaram a procurá-la, pelos jardins e depois casa adentro: foram ao porão onde não a encontraram, ao sótão onde também não estava.  Em cada cômodo e canto chamaram por seu nome. Tudo vão. E ganharam a rua e as ruas, vasculharam a cidade e as cidades, e seguiram na busca sem alento ou descanso, até se converterem numa horda crescente de andantes, deambulando sem rumo, esquecidos já do que ou de quem procuravam. E logo todos éramos (como) eles.

Incógnita, ela seguia na multidão.

Ou, talvez, não.

Hyeronimus Bosch, O Jardim das Delícias (aprox. 1510)


sexta-feira, 24 de julho de 2015

Antiquado

Às vezes doem-me saudades
do tempo em que o telefone
era menos smart que eu,
e estúpido, servil, acessório,
obrigava ao impensável:
Falar
E Ouvir.

Moça com celular num case de pérola, 2014 - John Jackson

domingo, 19 de julho de 2015

Contabilidade

À conta de quem cobraremos
as horas de espera, as horas
perdidas a conta-gotas?

A quem enviar a fatura
do tempo gasto no aguardo
da resposta, do convite,
do trem que vem com atraso?


Enquanto esperamos a vida,
a vida não nos espera
e segue bebendo-nos
gota a gota,
sem nos dizer
quanto resta
de saldo.
Jovem adormecida, Vermeer (1657)





sexta-feira, 3 de julho de 2015

Entrega


Súbita, mas delicadamente.

Escalou os tornozelos, subiu a panturrilha, se enroscou nas coxas, embebeu o sexo, afagou o umbigo, abraçou o peito, envolveu as costas, conquistou os braços, lambeu o pescoço, enregelou a nuca, fez festa ao queixo, comprometeu a boca, acariciou as faces, embaraçou as vistas, osculou as pálpebras, coroou a testa, ungiu a cabeça e recomeçou.

Provocou arrepios e gozo, levando a este outro mundo fluido, de carícias menos etéreas, onde abrigou o corpo, desnudado, desprotegido e entregue.

A onda.



Crianças na praia
Sorolla (?)

sábado, 27 de junho de 2015

sábado, 20 de junho de 2015

Quase-poema

O quase-poema é  menino é moleque:
toca a campainha
e mói as canelas...

O quase-poema é um vulto que varre
o canto da vista
e se evola.

O quase-poema é âncora entre nuvens
que o vento (rancoroso)
desanca.

É palavra que foge
da ponta da língua.
 
É a visita de alguém
cujo nome esquecemos.

Melodia informe
que nos escapole.

É etéreo
e deixa esse antegosto
de epifania
(ou quase).
Poema.


domingo, 14 de junho de 2015

Clichês

Quiçá inevitável
escolha:
as vias seguras,
repisadas,
lugares comuns,
a estrada gasta,
a paisagem cansada
de olhos.

Mas sigamos em frente
que nem sempre é preciso
reinventar a roda
e
afinal, todos os caminhos
levam a Roma.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Manual de Espeleologia

Descer por quantos nove círculos,
e sem saber das voltas e passos
quantos, para ir ao fundo
e além do fundo até
depois das penas
e dos pecados
nem muitos
encontrar
o centro
dentro
régio
eu.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Prontuário


... e que a despeito do tratamento, não houve qualquer remissão do delírio. Tenho acompanhado à distância o quadro. Com o tempo, ele adquiriu esses gestos meticulosos, contidos e incorporou ao vocabulário um sem número de jargões técnicos. Aprendeu um modo grave e aparentemente preocupado de olhar para os demais internos.
           Já repreendi as enfermeiras por o permitirem usar o guarda-pó branco sobre o uniforme, mas estas me ignoraram, como de costume (são irremediavelmente insubordinadas, essas...). Creio mesmo que se divirtam ao vê-lo desfilar pelos jardins e corredores fazendo prescrições e diagnósticos enquanto os outros pacientes o tratam com temerosa deferência. Sob a alegação de que seu comportamento não representa risco, permitem-no deixar as dependências do hospital (procedimento que reprovo, pois, segundo me parece, reforçam suas convicções delirantes).
Pretendo, oportunamente, encaminhar minhas notas ao Diretor do Hospital para que tome as devidas providências. Se ainda não o fiz é apenas por falta de tempo. De fato, por força do excesso de trabalho, me vejo obrigado a permanecer noite e dia entre estas abomináveis paredes verde oliva.



quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Selfie

Os primeiros autorretratos lhe ocorreram quase espontaneamente: registrar a própria imagem era uma extensão do gesto de olhar-se no espelho. Aos poucos, a ação converteu-se num hábito e quiçá num vício. Alguém próximo acusou-lhe o excesso (mas o que é estar doente quando o mundo entorno também está?). 
Em todas as imagens exibia o mesmo olhar perscrutador, como se fosse assaltado pelo receio de ter descoberto algum terrível segredo. Multiplicavam-se os retratos, variações desse mesmo tema: o eu, caleidoscópico. Era como se cada mudança tivesse que ser catalogada (como se a alguém, além dele, interessasse). Não poucos viram nisso uma frivolidade, sem enxergar esta verdade simples: retratava-se para provar que estava vivo, não para outrem, mas para si mesmo. Desconfiava da própria existência. E de tanto suspeitar que não era real, por não viver senão a retratar-se, acabou inexistindo.