Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sobre Chuvas e Leis

Creio que todos conhecem a estória, mas permitam-me recontá-la.

Havia, pois este Reino e seu Rei. Como todo Monarca que se preza, para bem governar, Sua Majestade despendia uma parte considerável do seu tempo editando leis. O tempo que lhe sobrava, gastava em seus prazeres reais (bailes, festejos, banquetes). Mas o maior destes era cavalgar. E embora pudesse fazê-lo a qualquer hora e em qualquer dia, preferia cavalgar às quartas-feiras.

Pois aconteceu de chover torrencialmente numa certa quarta-feira, em que o Rei desejava cavalgar, mais do que nunca (ou como sempre). Irado por ter aguados seus planos , o Monarca não hesitou em editar uma nova lei: “Daquele dia em diante restava proibido chover às quartas-feiras”. Um dos Conselheiros do Rei tentou dizer-lhe que tal lei não fazia sentido, pois não era possível determinar os dias da semana em que choveria ou não. O Monarca irou-se ainda mais. Como aquele súdito ousava contrariá-lo? Afinal, ele não sabia que o Rei, sendo o Rei que era, fora escolhido por Deus (e não pelo povo) e que, assim sendo, podia fazer a lei que lhe aprouvesse? E mandou decapitar o insolente...

As semanas que se seguiram foram de ensolaradas quartas-feiras (e segundas, e terças, e quintas, pois, naquele Reino, era comum que durante certa época do ano não chovesse). E o Rei regozijou-se pois sua lei fora obedecida... até uma certa nebulosa terça-feira à qual seguiu-se uma chuvosa manhã de quarta. Novamente, inflamou-se o Rei, pois a lei havia sido descumprida. Reuniu seus Conselheiros e perguntou-lhes quem era o responsável por tal desobediência? Um deles, gaguejou acovardado (lembrando-se, por certo, do destino do outro Conselheiro): “Ma-mas Majestade, na-não há um responsável...” O Rei ficou pensativo (afinal o Conselheiro tinha razão, o que não evitou que ele fosse decapitado) e logo lhe ocorreu a brilhante ideia de editar uma emenda à lei. “Daquele dia em diante, ficava instituído o cargo de ‘REAL CONSELHEIRO PARA ASSUNTOS CLIMÁTICOS’ cuja atribuição seria a de impedir que chovesse nas quartas-feiras, sob pena de ser executado caso não cumprisse com seus deveres”. Para ocupar tão importante cargo, escolheu o chefe dos Conselheiros Reais.

E seguiram-se ensolaradas semanas. E o Rei, satisfeito, cumulava de elogios, comendas e honras seu REAL CONSELHEIRO PARA ASSUNTOS CLIMÁTICOS pelas quartas-feiras de sol. Mas, seguiram-se as estações. E chegou o tempo das chuvas. E, porque era natural, choveu. Numa quarta-feira.

O Rei mandou chamar o Chefe dos Conselheiros, que tentou em vão explicar para Sua Majestade que a chuva era um evento natural e que ele não podia impedir que chovesse. Mas o Rei não ouviu seus argumentos... afinal, não se criara uma lei que concedia tais poderes ao subordinado? Fez decapitar o Conselheiro Chefe e o Vice-chefe assumiu seu posto. Seguiram-se semanas, meses, de chuva. E a cada quarta-feira o Rei, possesso, mandava degolar um dos traidores Conselheiros.

Não sei bem como termina a estória. Gostaria de dizer que o povo cansou-se dos desmandos do Rei e o depôs. Mas receio que houvesse naquele povo muitos que por razões diversas também não gostavam que chovesse às quartas-feiras e que acreditassem que era necessária e justa uma lei que impedisse tal aberração (pois a vontade do Rei era a expressão da vontade do Deus que o havia elegido). Não lhes ocorria que esse mesmo Deus era quem queria que chovesse. Inclusive às quartas-feiras.




 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A Obscena Senhora B.


Sua vinda mudara os hábitos da casa. Por exemplo, todos passaram a recolher-se mais cedo, alegando cansaço antes ignorado (justo, no entanto, pois duro era o trabalho nas minas). Mas foi apenas após sua chegada que eles passaram a queixar-se do sono e a ir deitar-se nem bem nascida a noite.Quando enfim a casa respirava silêncio, ela dirigia-se a um dos quartos. Uma fresta de luz se insinuava e expandia, dando passagem a seu vulto.

Sabia-se ansiosamente aguardada por um deles (o escolhido) e caminhava, lenta, até a cama. Suas mãos, alvas como algodão ou neve, roçavam aquele que, em prontidão, a esperava. Sonâmbula, o tocava e ao fim beijava-lhe a testa e o fazia sentir que sim; que valeram os esforços do árduo trabalho apenas para aquela rápida carícia: momento do indizível. Arremate: a respiração de ofegante se fazia alívio e o eleito podia, apaziguado, adormecer.

Silenciosa como entrara, ela saía. Em seus quartos, a aguardavam os outros seis homenzinhos.