Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

domingo, 25 de janeiro de 2015

Prontuário


... e que a despeito do tratamento, não houve qualquer remissão do delírio. Tenho acompanhado à distância o quadro. Com o tempo, ele adquiriu esses gestos meticulosos, contidos e incorporou ao vocabulário um sem número de jargões técnicos. Aprendeu um modo grave e aparentemente preocupado de olhar para os demais internos.
           Já repreendi as enfermeiras por o permitirem usar o guarda-pó branco sobre o uniforme, mas estas me ignoraram, como de costume (são irremediavelmente insubordinadas, essas...). Creio mesmo que se divirtam ao vê-lo desfilar pelos jardins e corredores fazendo prescrições e diagnósticos enquanto os outros pacientes o tratam com temerosa deferência. Sob a alegação de que seu comportamento não representa risco, permitem-no deixar as dependências do hospital (procedimento que reprovo, pois, segundo me parece, reforçam suas convicções delirantes).
Pretendo, oportunamente, encaminhar minhas notas ao Diretor do Hospital para que tome as devidas providências. Se ainda não o fiz é apenas por falta de tempo. De fato, por força do excesso de trabalho, me vejo obrigado a permanecer noite e dia entre estas abomináveis paredes verde oliva.



quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Selfie

Os primeiros autorretratos lhe ocorreram quase espontaneamente: registrar a própria imagem era uma extensão do gesto de olhar-se no espelho. Aos poucos, a ação converteu-se num hábito e quiçá num vício. Alguém próximo acusou-lhe o excesso (mas o que é estar doente quando o mundo entorno também está?). 
Em todas as imagens exibia o mesmo olhar perscrutador, como se fosse assaltado pelo receio de ter descoberto algum terrível segredo. Multiplicavam-se os retratos, variações desse mesmo tema: o eu, caleidoscópico. Era como se cada mudança tivesse que ser catalogada (como se a alguém, além dele, interessasse). Não poucos viram nisso uma frivolidade, sem enxergar esta verdade simples: retratava-se para provar que estava vivo, não para outrem, mas para si mesmo. Desconfiava da própria existência. E de tanto suspeitar que não era real, por não viver senão a retratar-se, acabou inexistindo.