Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

quarta-feira, 12 de julho de 2017

À espera

Num gesto involuntário, consulta o celular: 03:19 pm. A ponta do pé direito apoiada no chão enquanto o calcanhar oscila como se seguisse o ritmo de uma música oculta. Quase um tremor. As mãos - é preciso ocupá-las - ajeitam o saleiro e o porta-guardanapos. O garçom se aproxima. Se ele perguntar de novo se já escolhi...

- Com licença, - intervem entre os dentes amarelecidos - o senhor já escolheu?

- Ainda não.

- Fique à vontade - diz e se afasta, olhando de soslaio.

Ele verifica, novamente, o telefone: 03:21 pm. Talvez, um atraso. Marcaram às três. Mas, como não conhecia o lugar, e como o restaurante ficava do outro lado da cidade, e como não conseguia pensar noutra coisa, chegara cedo demais. Às duas e trinta e quatro, sentou-se junto à mesa de onde melhor se podia ver a entrada. “Dadas as circunstâncias, é preciso discrição. Espero que você compreenda”, dizia o e-mail. Ele assentiu, contrariado: poderiam, ao menos, ter trocado os telefones.

O sinete sobre a porta anuncia uma chegada. Desenha-se contra o vidro fosco um vulto. Respiração e pulso em descompasso: ele se apruma na cadeira e vê entrar uma jovem de cabelos louros, aéreos. Ela tem a sua idade, vinte e poucos, usa um vestido azul celeste na altura dos joelhos, estampado com o que parecem ser minúsculas borboletas, ou, talvez, pássaros ou, talvez, aviões. Um leve casaco branco paira sobre seu antebraço esquerdo. Atrás dela, a mão de um homem de uns quarenta anos flutua sobre seu ombro direito. O jovem desvia o olhar. Por um instante, quis que fosse ela a pessoa a quem aguardava, não porque a tivesse desejado, mas, apenas, para que a espera chegasse ao fim.

Seu olhar recai sobre a mesa. Dá-se conta de que, no lugar onde estivera o saleiro, restou o testemunho de um círculo feito de minúsculos cristais brancos. Pressiona o indicador contra a arenosa matéria e experimenta sua aspereza com a polpa macia do dedo. O sal se dissolve, saturando o suor da mão. Quase pode saber-lhe o gosto.

Outra vez, a porta se abre e os olhos, em resposta, procuram. Pulso, de novo, em tropel: um vulto por trás do vidro. Sem dúvida, é a mão de um homem que segura a porta. Talvez seja ele. Mas, quem surge é uma senhora envolta num casaco terroso, pesado demais para a estação, quase da mesma cor dos cabelos artificialmente castanhos. Um cachecol areia lhe escorre dos ombros. O homem que sustentava a porta, entra logo após. Ele usa um terno marinho imune às modas. Braços dados, o casal passa por ele, deixando atrás uma onda de jasmim e almíscar.

O jovem se abandona na cadeira e esvazia os pulmões, vencido. Folheia o cardápio que já sabe de cor e lê, escandindo as sílabas, como quem busca, na cabala do acaso, explicação ou resposta.

- Es-con-di-di-nho... vin-te-e-três.

Atrás dele, uma mulher ri. O rosto lhe queima e os ouvidos se aguçam à procura da ameaça. Uma segunda mulher dispara:

- Eu juro! Ele ainda teve a cara de pau de me ligar?!

Gargalhadas, cúmplices. Não era ele, afinal, o alvo. E por que seria? Ninguém o sabia ali. Ninguém o notara. Salvo, por certo, o garçom que de novo o rondava.

O soar do sino anuncia um novo cliente. O homem, em quem ele busca traços familiares, tem perto de cinquenta anos, veste um blazer cinza sobre uma camisa palha. Cinza sobre palha, ele para e procura. O jovem sustém a respiração, ajeita-se na cadeira e ergue, timidamente, a mão direita. Do lado oposto, caminha uma mulher que acolhe o recém-chegado com um beijo. Atrás do jovem, explode nova risada da qual ele não tem certeza de não ser o alvo. Seu rosto arde.

- Pois não? - aproxima-se o garçom com o sorriso amarelo, em desalinho. Ele leva alguns segundos para dar-se conta de que o braço permanecera erguido.

- Uma água com gás - gagueja, em improviso.

- Com gelo?

- Sem.

O atendente se afasta e ele volta a ficar sozinho. Mais do que antes. Mais do que nunca. Não consegue evitar e consulta o telefone: 03:45 pm. O homem, que ele não conhece, não veio; não virá. Já não sabe se há décadas ou há horas o espera.




      

domingo, 7 de maio de 2017

O breve

Projétil contra a vidraça. Estrondo sem estilhaço. Mas o que foi? Abro a janela e vejo, vemos: o corpo emplumado, latejante, mínimo.

É o menino quem mais se apressa. Chega antes, com  um salto. Atrás, sua irmã e eu.

Os três nos inclinamos sobre o corpo ínfimo, frágil e pulsante.

- Mãe, faça alguma coisa.

Há um tom de ordem ou de súplica na voz do pequeno. Ante o trágico que se avizinha, só consigo pensar que perdoar é preciso. Perdoar-lhe por ter sete anos e por crer na minha onipotência. Perdoar-me por nada poder contra a obscura foice.

- Afastem-se. Peço.

Contemplamos. As penas negras do dorso contrastantes com o branco de alabastro do ventre. Os olhos também negros, minúsculos, dois grãos burilados, cobiçando o azul impossível do céu. As asas semiabertas voando agônicas no chão de concreto. A respiração em ligeiros saltos. A vida se dissipando pelos artelhos trêmulos. Solidários, inspiramos o ar rarefeito na mesma cadência do pássaro.

- Ele está morrendo, mãe?

É a menina agora, subitamente arrancada de sua gasta indiferença. Pede-me a confirmação do óbvio, mas não encontro vocábulo com que lhe diga a banalíssima verdade: estamos todos. Mas a morte, em tudo diluída, fecha agora seus dedos em torno no corpúsculo da ave.

O menino é o primeiro quem chora, descampado. Passo o braço direito ao redor do seu ombro e o trago para junto de mim. Também tenho os olhos baços. Última a render-se, a menina me abraça, em busca de sua cota de consolo. Embora impotente, os tenho aninhados, como se pudesse protegê-los do fúnebre espetáculo: o diminuto peito emplumado enchendo-se de ar uma última vez e, lentamente, libertando-se, ritualizando o triste desfecho.

Tudo está concluído.

O mundo nos desimporta. O pássaro, é tudo o que há . Nossos pensamentos são dele. Dele, nossos sentimentos. Ele cresce-nos em importância, domina com microscópica soberba cada fiapo de nossas mentes. Aninha-se pleno em nossos corações. Ensaio mentalmente um discurso mortuário que lhe minta uma existência mais alegre: ainda pela manhã o vi rondar a parreira, cantando! Em respeito, desisto da ficção. A verdade é que apenas o conhecemos em sua decadência, quando a vida já lhe escapava pelos minúsculos dedos em forma forquilha.

Os irmãos ainda aguardam um milagre quando me desprendo do simétrico abraço. Alguém tem de ocupar-se do funeral. Entre o formão e a tesoura de poda, encontro os instrumentos para o impiedoso ofício. Cavo entre as begônias um fosso, sepultura de barro. E no fundo da terra semeio esse corpo ao ar destinado. O rito é breve e silencioso.

Doravante, poderei dizer, mas não digo: há um corpo velado em meu jardim.

O instante é outro, a menina tem pressa: imagens pixeladas a aguardam. Ficamos eu e o menor, um pouco mais, como se nada houvesse na galáxia que nos merecesse.

- Mãe, morrer dói?

Embora a pergunta me retalhe, respondo sem sangrar:

- Dói. Mas passa.
...

Flores encarnadas desabrocham, indiferentes ao corpo que sob elas apodrece. Na janela, uma minúscula fissura, imperceptível quase. Isso e a memória testemunham contra a insignificância do pássaro que nos fulgurou um dia.


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Desvio

Era sempre festa quando ele me buscava na escola. Aquela tarde, um dia comum, quase. O céu era azul ou, talvez, eu assim queira lembrá-lo porque sempre devem ser azuis os céus da infância. Ainda mais, quando a alegria vai ao nosso encontro, inesperada. E vê-lo apenas já bastava para tanto.

O trajeto da escola para a casa tornava-se outro na sua companhia: isso de demorar-se na praça, tomar um sorvete, cúmplice -“Não conte a sua mãe!” - depois passar pela banca onde ele apanhava um jornal e eu podia escolher o gibi que quisesse. Estar com ele era como uma promessa e sua realização. Alegria leve e plena, abraço constante que prescindia de toques. Sabia-me protegida por aqueles olhos que mamãe dizia serem duas muralhas cinzentas. Nunca entendi o que ela quisesse dizer. Jamais lhe perguntei. Mas acho que era por que havia neles qualquer coisa que nos convidava a escalá-los apenas pelo gosto de espiar do outo lado.

Como esquecer aquele dia? Meu avô, na porta da escola, enorme e inconfundível: o casaco escuro de sempre, um lenço vermelho no bolso e o chapéu sem o qual não saía de casa. Elegante e nobre, mamãe dizia que ele tinha ombros de lorde. Nunca entendi o que ela quisesse dizer. Dos ombros, eu lembrava de quando em pequena me carregavam. E eu podia então olhar do alto, sem medo, o mundo sob a sola dos meus sapatos. Mas não naquele dia, pois eu já era grande demais para eles. Nove anos, quase dez. Meu jogo predileto tornara-se outro: fazer-me adulta e tagarelar sobre as miudezas da vida. Ele parecia ouvir-me com a mesma gravidade que dedicava às manchetes dos jornais. Creio que era apenas eu quem falava. Rir, ele ria muito: uma risada esponjosa, que mamãe dizia ser de nuvem. Nunca entendi o que ela quisesse dizer. Jamais pude perguntá-la. Talvez fosse porque aquele riso convidasse a gente a fechar os olhos e largar os braços e se atirar do balanço como se esperasse cair num rio de plumas.

Depois, nos sentávamos no café, quase esquina de casa. Ele pedia uma taça de vinho, acendia um cigarro e abria o jornal. Eu tomava uma soda e lia meu gibi. E nisso gastávamos o resto da tarde.

Mas, naquele dia, foi outro o trajeto. Não passamos pelo parque. Eu monologava, como de costume, mas ele parecia algo incorpóreo apesar dos passos de chumbo. Cobrei o sorvete a que eu julgava ter direito e ele pareceu não ouvir. Também não paramos na banca de revistas. Fomos direto ao café. Respirei o alívio de perceber que ao menos uma parte da nossa rotina se mantinha. Ele pediu sua taça de vinho e minha soda. Acendeu o cigarro e me olhou demoradamente como se me visse pela primeira ou última vez. Creio ter percebido uma fissura nos olhos de muralha e evitei-os. Lembro-me de ter reparado que ele estava encurvado, e que sua voz adquirira outros tons, menos suaves, e que seu riso desaparecera sem pedir desculpas. Foi a primeira vez que notei esses novos modos aos quais tive de me habituar.

- Sophie, querida, aconteceu um acidente.

E desde então o céu fez-se sépia.



quinta-feira, 2 de março de 2017

Fazedor

Carne que quer fazer-se verbo
(sem a pretensão do infinitivo)
subjugado a modos e tempos,
conjugado, circunscrito, pessoal.

Verbo em finito verso
que, contudo, o transcendente
até as bordas

(do infinito?).


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Hipocondria

Males todos do mundo,
acudi-me que preciso
de vossos muitos nomes,
para emprestar a minha dor.

Síndromes desconhecidas,
sussurai aos meus ouvidos
doces estranhos sintomas
para que eu comece a sentir
e em os sentindo me sinta.

Cedei seu nome a esse oco que me assalta
cujo outro nome, em falta, é legião.