Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Desvio

Era sempre festa quando ele me buscava na escola. Aquela tarde, um dia comum, quase. O céu era azul ou, talvez, eu assim queira lembrá-lo porque sempre devem ser azuis os céus da infância. Ainda mais, quando a alegria vai ao nosso encontro, inesperada. E vê-lo apenas já bastava para tanto.

O trajeto da escola para a casa tornava-se outro na sua companhia: isso de demorar-se na praça, tomar um sorvete, cúmplice -“Não conte a sua mãe!” - depois passar pela banca onde ele apanhava um jornal e eu podia escolher o gibi que quisesse. Estar com ele era como uma promessa e sua realização. Alegria leve e plena, abraço constante que prescindia de toques. Sabia-me protegida por aqueles olhos que mamãe dizia serem duas muralhas cinzentas. Nunca entendi o que ela quisesse dizer. Jamais lhe perguntei. Mas acho que era por que havia neles qualquer coisa que nos convidava a escalá-los apenas pelo gosto de espiar do outo lado.

Como esquecer aquele dia? Meu avô, na porta da escola, enorme e inconfundível: o casaco escuro de sempre, um lenço vermelho no bolso e o chapéu sem o qual não saía de casa. Elegante e nobre, mamãe dizia que ele tinha ombros de lorde. Nunca entendi o que ela quisesse dizer. Dos ombros, eu lembrava de quando em pequena me carregavam. E eu podia então olhar do alto, sem medo, o mundo sob a sola dos meus sapatos. Mas não naquele dia, pois eu já era grande demais para eles. Nove anos, quase dez. Meu jogo predileto tornara-se outro: fazer-me adulta e tagarelar sobre as miudezas da vida. Ele parecia ouvir-me com a mesma gravidade que dedicava às manchetes dos jornais. Creio que era apenas eu quem falava. Rir, ele ria muito: uma risada esponjosa, que mamãe dizia ser de nuvem. Nunca entendi o que ela quisesse dizer. Jamais pude perguntá-la. Talvez fosse porque aquele riso convidasse a gente a fechar os olhos e largar os braços e se atirar do balanço como se esperasse cair num rio de plumas.

Depois, nos sentávamos no café, quase esquina de casa. Ele pedia uma taça de vinho, acendia um cigarro e abria o jornal. Eu tomava uma soda e lia meu gibi. E nisso gastávamos o resto da tarde.

Mas, naquele dia, foi outro o trajeto. Não passamos pelo parque. Eu monologava, como de costume, mas ele parecia algo incorpóreo apesar dos passos de chumbo. Cobrei o sorvete a que eu julgava ter direito e ele pareceu não ouvir. Também não paramos na banca de revistas. Fomos direto ao café. Respirei o alívio de perceber que ao menos uma parte da nossa rotina se mantinha. Ele pediu sua taça de vinho e minha soda. Acendeu o cigarro e me olhou demoradamente como se me visse pela primeira ou última vez. Creio ter percebido uma fissura nos olhos de muralha e evitei-os. Lembro-me de ter reparado que ele estava encurvado, e que sua voz adquirira outros tons, menos suaves, e que seu riso desaparecera sem pedir desculpas. Foi a primeira vez que notei esses novos modos aos quais tive de me habituar.

- Sophie, querida, aconteceu um acidente.

E desde então o céu fez-se sépia.