Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

sábado, 13 de dezembro de 2014

Ana

Habituou-se tanto ao silêncio - este crescente deserto - que aos poucos foi esquecendo o gosto das palavras. No lugar delas, sedimentaram-se fragmentos: rostos, objetos, lugares, sensações... Um mundo assaltado pelo sempre novo: impermanente, descontínuo. 
Teve medo? Talvez no princípio. Mas logo, por falta de um rótulo, também o medo se desfez. 
Já não possuía coisa alguma (senão o instante, sabidamente fugaz) quando, ao ter ouvido o próprio nome,  seu rosto ganhou a luz de um sorriso. E não foi pela musicalidade das sílabas, foi algo distinto, como se de algum recôndito lugar surgisse uma resposta, um reconhecimento: um eu. Não sei o que este reconhecimento trouxe consigo: a memória da voz materna? a infância? a identidade? o fio condutor de toda uma vida? Talvez apenas o consolo de haver encontrado algo que havia, sem o saber, perdido.
É a luz deste rosto que  me visita em sonhos, às vezes.
Esta, creio, foi sua última lembrança.


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Mrs Dalloway

"Mrs Dalloway said she would buy the flowers herself "

Virginia Woolf

Vou eu mesma comprar as flores.
Melhor, vou eu mesma plantá-las.
Lavrar a terra com ferozes dedos
e semear lírios e papoulas.

Vou eu mesma regar as flores,
com meu sangue e seiva e suor.
vou eu mesma ditar-lhes as cores
e delicadamente irei pintá-las.

Vou eu mesma tecer cada flor
com mil cuidados; com mil carícias.
Fazê-las florescer como quem conta
ao mundo a novidade de estar vivo.

E quando fortes, e plenas, e belas,
e quando nelas não mais couber leveza,
hei de cortá-las, hei de colhê-las:
Sou um deus em seu jardim.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Suspiros de Ariène

Vezes muitas a vi estática, o olhar fixo nalgum ponto entre o lá e o aqui: um não-lugar. Suspirante. 
Um dia violentei seu silêncio: "Por que suspiras?"  Com um olhar que me transpassou e um sorriso seco, respondeu-me: "Pelo nada". E interpretei que ela dissesse que não era da minha conta e que eu devia cuidar da minha vida e me retirei, entre desculposo e ofendido. Só depois, quando visitei a lembrança, foi que me dei conta de que ela dissera "pelo nada" e não "por nada", como eu havia entendido a princípio. E que seu olhar não me acusava, mas procurava um cúmplice.
Pelo Nada, eu refleti. O Nada: o silêncio anterior ao Fiat, o vazio de si mesmo vazio, a ausência irreparável, o inominável que precede o verbo e  a esse sobrevive, o que tinge com cor inexistente toda memória e esperança, o pó que irmana os Césares e os vermes e que rotula de vaidade todo o feito humano: o Nada. E me flagrei suspirando, o olhar fixo em um não-lugar.
Prometi a mim mesmo que no dia seguinte, quando a reencontrasse no trabalho, lhe diria que eu a compreendera, e que também me assalta esta vertigem do abismo, e que às vezes, também, me falta ar, e que me  acomete esta ânsia, o branco desespero, a solidão sem acalanto: a perspectiva do Nada. Queria ter lhe dito essas coisas, mas era tarde: ela havia atendido ao chamado do Nada - quiçá irrecusável.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Metamorfose

O corpo se despe
se despede do peso
de ser corpo
e leve
ensaia outro passo
que aos ares o eleva
e livre se apossa do
entorno do espaço.
O corpo gravita outras leis
(menos graves).

E é de vê-lo, assim, esplêndido
que alma quer fazer-lhe casa.

(O corpo habita suas asas)


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O Nasceres

Não me recordo, ao certo, quando foi que  nasceu a dúvida, talvez porque o que houve antes se destinasse  ao esquecimento. Sei do que veio após: o odor da existência inaugural, a face que as coisas tinham ao serem vistas pela primeira vez, a involuntária, mas harmônica, música das criaturas.
Mas a primeira lembrança, antes mesmo que soubéssemos ou suspeitássemos da própria nudez, foi o sabor doce e ácido  do fruto. E desde este momento já não estávamos mais no paraíso.
E houve tarde e houve manhã: um primeiro dia.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

 Livre

 O homem que escolhe
(ou pensa que escolhe)
entre os livros de uma estante
não sabe que cumpre um destino.
  DuChêne

Copo?
Corpo?
Cópula?

Cornucópia.

Tomo:(Ou não tomo?)
s.m. Cópia,
Volume.

Volúpia.
Vou ou não vou?
Vou. E não vou.
Vou e não volto.
Voo.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Judite

Judite passava tanto tempo esconjurando a morte que quando morreu, numa cinza quarta-feira, ficou ainda um par de dias e  noites benzendo-se e debulhando o terço e recitando o credo ao qual emendava:  Deus-da-morte-me-livre-amém.
No alto da segunda noite, percebeu-se morta. E quando a encontraram, na manhã do terceiro dia, tinha o rosto sereno como nunca em vida.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

David

Dormia entre seixos e, mineral, sonhava: o gigante, a funda, a queda, a glória. Alguém o despertou de seu sono pétreo e ordenou-lhe: "Fala!".
Mas seu silêncio de mármore dispensava - por transcender - qualquer verbo.
 

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Da Carne

Talvez eu faça um poema,
se me assaltarem palavras
se eu for capaz de dar corpo
ao que meus olhos escutam.

Talvez eu gere um poema
de sangue, de chumbo ou de éter,
de nuvem, quem sabe, ou de nata.
Talvez eu encarne um poema.

Talvez eu vomite o poema
que há muito me oprime a garganta,
que há dias me fere o pescoço.
Talvez eu soluce um poema.

Talvez
eu seja
um poema.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Do Esquecimento



Sobre um tema de Camus


Eis a minha história, pelo que dela me recordo.
Era, então, a Guerra, não sei mais qual delas. Havia esse soldado. E havia aquela casa onde a mulher abraçava seus dois filhos. Misericordioso, o soldado concedeu-lhe uma escolha. Disse que deixaria viver um dos meninos, o que ela mais amasse. Em lágrimas, a mãe implorou que deixasse viver a ambos. Com a mesma frieza ele insistiu na proposta: “Não seja tola. Tens a oportunidade de salvar a um dos teus. Salva aquele a quem mais amas. Do contrário terei de matar a todos.” Ela olhou para os dois filhos, como que mensurando o imensurável e sentenciou, embargada a voz: “Deixa viver o mais novo”. Sem hesitação, o soldado arrancou o preferido dos seus braços e o fuzilou. Depois atirou na mulher. Antes de sair, disse ao sobrevivente: “Nunca te esqueças que tua mãe escolheu teu irmão”. Então partiu.
            De todas as coisas me recordo com clareza. Só não me lembro se fui o soldado ou o menino.



quinta-feira, 31 de julho de 2014

Signo

No oco
dos versos,
entre verbos
e nomes
se esconde,
esquivo
o signo interdito.
Do silêncio imposto
despiu-se,
e insinuou-se,
e gritou-se,
nos interstícios.
Fez-se.
Interdisse-se:
o signo,
o primeiro,
o proibido.


sábado, 12 de julho de 2014

A outra versão

A Alphonsus de Guimarães
Quando a Lua viu Ismália
solitária a cantar,
quis para a terra descer
para com ela estar.

Então a Lua deixou
a solidão estelar
e sob as águas pousou,
e nelas fez o seu lar.
No céu, a Lua plantou
Imagem especular
E, desde então, quem a viu
jamais pode suspeitar
que a Lua à terra baixou,
que ela no mar se escondeu.
Somente a Ismália chamou
E então, Ismália atendeu:
"Se por mim o céu deixou
não posso eu me escusar
de com ela ir viver".
Depois lançou-se ao mar....

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Babel



A Alan Turing

As máquinas falam
A língua dos homens.
Os homens ensaiam
a língua dos anjos.

Todos falam,
Ninguém há que escute.

E Eros brinca de esconde-esconde
Num descuidado jardim que foi o Éden.

(Allan, guarde uma maçã para mim).


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Evangelho apócrifo



Tenho sede, e sede, e sede
Teu corpo lago e rio e miragem
É água e poço, é chuva e aragem.

- Pedro, tu me amas?

Meu corpo lasso, meus passos, cansaço
Teu corpo sombra, e remanso e refúgio.
Quarenta eras passei num deserto.

- Pedro, tu me amas?

Renitente, insisto, procuro,
Bato à porta – ninguém há que abra;
Tu tens a chave à mão, eu espero.

- Mas, Pedro, tu me amas?



sábado, 31 de maio de 2014

A Flor



"E se você dormisse ? E se você sonhasse ?
E se, em seu sonho, você fosse ao paraíso
e lá colhesse uma flor bela e estranha ?
E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos ?
Ah, e então ?"

Samuel Taylor Coleridge

Despertou. Por um instante de hesitação não soube onde se encontrava. Olhou ao redor: definitivamente, não estava mais no paraíso. O paraíso não se parecia com seu quarto. Era, antes, como um jardim. Contudo, tão inegável quanto o fato de estar deitado, sobre sua cama, tão real quanto a esposa que ressonava a seu lado, era a flor que ele agora tinha nas mãos. Reconheceu-a. Aquela flor, colheu-a no sonho.

Num primeiro momento, fez o que faria qualquer outro: duvidou. Sabia que ela não poderia estar ali. Não ignorava que as flores que se colhem em sonhos estão presas a esse universo, como tudo mais que habita o mundo onírico. Apenas nós somos capazes de transitar entre os dois mundos: o real e o dos sonhos. Estes não são capazes de se impor à realidade. Porém, quanto mais negava a existência da flor, com mais veemência esta se impunha aos seus sentidos, em cor, nitidez, textura, forma, aroma... A flor permanecia, bela, viva, quase pulsante. Inegável. Inelutável.

Quis acordar a esposa para que ela testificasse a existência da flor e, deste modo, certificar-se de que não alucinava. Mas, abandonou a ideia, por medo de que a mulher, uma vez desperta, vendo a flor não lhe acreditasse na origem e, não a vendo, desconfiasse (com razão) da sua lucidez.

A certa altura já não duvidava. Sabia que ela estava lá, entre seus dedos, tão real quanto estes. E, embora não fosse botânico (longe disso, vivia entre números), intuiu que se tratava de um exemplar jamais visto. Seus contornos, seus matizes e seu perfume, sobretudo este último, atestavam esta singularidade. Este odor (inebriante, único) ia tomando conta do quarto e, em breve, irradiaria por todo o apartamento. Não tardaria até que este cheiro se espalhasse pelo prédio, as ruas, a cidade e quiçá por todo o mundo (não se deve subestimar o poder de uma flor, sobretudo se colhida num sonho). Imaginou que em breve algum vizinho insone bateria a sua porta procurando pela fonte dessa emanação. E o que diria quando lhe perguntassem de onde surgira tal espécime? Acaso alguém acreditaria nele se contasse o modo como tinha vindo ao mundo?
 

Súbito, ocorreu-lhe que teria de livrar-se dela, antes que o mundo conhecesse sua existência. Não sabia, no entanto, qual era o meio adequado para livrar-se de uma flor colhida num sonho. Pensou que não poderia, simplesmente, atirá-la no lixo (sendo os sonhos e suas derivações parte de quem os sonha, tal ato equivaleria a abandonar-se numa cova).  Logo intuiu que também não poderia desfazê-la. Embora tangível, suspeitava nela algo de imaterial, pois, sendo consubstancial aos sonhos, devia como estes ser indestrutível. Pensando nessas coisas e narcotizado pelo perfume, acabou adormecendo quando já amanhecia. E não sonhou mais com coisa alguma.

Por fim, despertou. Num Jardim.