"E se você
dormisse ? E se você sonhasse ?
E se, em seu sonho, você fosse ao paraíso
e lá colhesse uma flor bela e estranha ?
E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos ?
Ah, e então ?"
Samuel Taylor Coleridge
Despertou. Por
um instante de hesitação não soube onde se encontrava. Olhou ao redor:
definitivamente, não estava mais no paraíso. O paraíso não se parecia com seu
quarto. Era, antes, como um jardim. Contudo, tão inegável quanto o fato de
estar deitado, sobre sua cama, tão real quanto a esposa que ressonava a seu lado,
era a flor que ele agora tinha nas mãos. Reconheceu-a. Aquela flor, colheu-a no
sonho.
Num primeiro
momento, fez o que faria qualquer outro: duvidou. Sabia que ela não poderia
estar ali. Não ignorava que as flores que se colhem em sonhos estão presas a
esse universo, como tudo mais que habita o mundo onírico. Apenas nós somos
capazes de transitar entre os dois mundos: o real e o dos sonhos. Estes não são
capazes de se impor à realidade. Porém, quanto mais negava a existência da
flor, com mais veemência esta se impunha aos seus sentidos, em cor, nitidez,
textura, forma, aroma... A flor permanecia, bela, viva, quase pulsante.
Inegável. Inelutável.
Quis acordar a
esposa para que ela testificasse a existência da flor e, deste modo,
certificar-se de que não alucinava. Mas, abandonou a ideia, por medo de que a
mulher, uma vez desperta, vendo a flor não lhe acreditasse na origem e, não a
vendo, desconfiasse (com razão) da sua lucidez.
A certa altura
já não duvidava. Sabia que ela estava lá, entre seus dedos, tão real quanto
estes. E, embora não fosse botânico (longe disso, vivia entre números),
intuiu que se tratava de um exemplar jamais visto. Seus contornos, seus matizes
e seu perfume, sobretudo este último, atestavam esta singularidade. Este odor
(inebriante, único) ia tomando conta do quarto e, em breve, irradiaria por todo
o apartamento. Não tardaria até que este cheiro se espalhasse pelo prédio, as
ruas, a cidade e quiçá por todo o mundo (não se deve subestimar o poder de uma
flor, sobretudo se colhida num sonho). Imaginou que em breve algum vizinho
insone bateria a sua porta procurando pela fonte dessa emanação. E o que diria
quando lhe perguntassem de onde surgira tal espécime? Acaso alguém acreditaria
nele se contasse o modo como tinha vindo ao mundo?
Súbito,
ocorreu-lhe que teria de livrar-se dela, antes que o mundo conhecesse sua
existência. Não sabia, no entanto, qual era o meio adequado para livrar-se de
uma flor colhida num sonho. Pensou que não poderia, simplesmente, atirá-la no
lixo (sendo os sonhos e suas derivações parte de quem os sonha, tal ato
equivaleria a abandonar-se numa cova).
Logo intuiu que também não poderia desfazê-la. Embora tangível,
suspeitava nela algo de imaterial, pois, sendo consubstancial aos sonhos, devia
como estes ser indestrutível. Pensando nessas coisas e narcotizado pelo
perfume, acabou adormecendo quando já amanhecia. E não sonhou mais com coisa
alguma.
Por fim, despertou. Num Jardim.