Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

sábado, 2 de julho de 2016

A guardiã

 
    Na imensa casa onde vivíamos, havia uma porta desde sempre fechada. Minha avó desencorajava-me a curiosidade com fábulas. Dizia de um ser monstruoso que  vivia do outro lado e que somente ela poderia estar com a criatura sem sofrer dano. Embora ignorasse suas formas, esse monstro habitava meus pesadelos.
      Empertigada e severa, minha avó era quem possuía a chave que sempre trazia consigo. Duas vezes por dia, em horários regulares, ela passava pela porta. Sempre tomava o cuidado de voltar a trancá-la com três ruidosas voltas. Demorava-se algum tempo dentro do obscuro cômodo. Não consigo imaginar o que fizesse lá dentro. Quando me via a rondar a porta, repreendia-me com o duro olhar (bastava!).
      Às vezes, quando ela não estava por perto, eu deitava o olho à fechadura para tentar enxergar algo. Ou então, colava o ouvido à porta para identificar algum som, mas nada escutava além de minha própria respiração e do laborioso trabalho de cupins devorando a madeira. E porque as tardes eram enormes e solitárias e porque não havia muito o que fazer dentro da casa, eu sonhava  o dia em que os cupins acabariam por devorar a porta por inteiro, abolindo definitivamente o obstáculo entre mim e o segredo que ela guardava.
     Com os anos, tive a impressão de que a casa e minha avó diminuíam. Somente a porta porta parecia continuar enorme, guardiã implacável do mistério,  limiar de dois mundos. Eu já não acreditava em monstros naquela memorável manhã. Minha avó passou pela porta e a trancou, como de costume. Mas não voltou no tempo habitual. Já anoitecia quando, invadido pela angústia, ensaiei o gesto inédito de tentar abrir a porta. Em vão. Resolvi olhar pela fechadura, como quando era criança, e entrevi os pés de minha avó, aparentemente caída. Fui possuído por uma força que eu ignorava ter. Irrefletidamente, arrombei a porta e invadi o cômodo. E vi minha avó estirada ao chão. Desesperado, inclinei-me sobre seu frágil corpo, desfalecido e frio. Chamei por seu nome, entre soluços e lágrimas. Mas não houve qualquer reação.
     Só então ergui o olhar e notei uma superfície lisa e polida à minha frente. Ela duplicava a imagem de minha avó. Sobre essa imagem dela, um ser repulsivo, de cabeça disforme e demoníacos olhos, devolvia-me o olhar. Afastei-me, num movimento reflexo. O ser ecoou, simultâneo, meu gesto. Levei a mão ao rosto e ele também o fez, em sincronia.
      Foi então que compreendi.
      Na parede oposta,  havia uma porta que dava para o mundo.  Aberta.