Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

sábado, 31 de maio de 2014

A Flor



"E se você dormisse ? E se você sonhasse ?
E se, em seu sonho, você fosse ao paraíso
e lá colhesse uma flor bela e estranha ?
E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos ?
Ah, e então ?"

Samuel Taylor Coleridge

Despertou. Por um instante de hesitação não soube onde se encontrava. Olhou ao redor: definitivamente, não estava mais no paraíso. O paraíso não se parecia com seu quarto. Era, antes, como um jardim. Contudo, tão inegável quanto o fato de estar deitado, sobre sua cama, tão real quanto a esposa que ressonava a seu lado, era a flor que ele agora tinha nas mãos. Reconheceu-a. Aquela flor, colheu-a no sonho.

Num primeiro momento, fez o que faria qualquer outro: duvidou. Sabia que ela não poderia estar ali. Não ignorava que as flores que se colhem em sonhos estão presas a esse universo, como tudo mais que habita o mundo onírico. Apenas nós somos capazes de transitar entre os dois mundos: o real e o dos sonhos. Estes não são capazes de se impor à realidade. Porém, quanto mais negava a existência da flor, com mais veemência esta se impunha aos seus sentidos, em cor, nitidez, textura, forma, aroma... A flor permanecia, bela, viva, quase pulsante. Inegável. Inelutável.

Quis acordar a esposa para que ela testificasse a existência da flor e, deste modo, certificar-se de que não alucinava. Mas, abandonou a ideia, por medo de que a mulher, uma vez desperta, vendo a flor não lhe acreditasse na origem e, não a vendo, desconfiasse (com razão) da sua lucidez.

A certa altura já não duvidava. Sabia que ela estava lá, entre seus dedos, tão real quanto estes. E, embora não fosse botânico (longe disso, vivia entre números), intuiu que se tratava de um exemplar jamais visto. Seus contornos, seus matizes e seu perfume, sobretudo este último, atestavam esta singularidade. Este odor (inebriante, único) ia tomando conta do quarto e, em breve, irradiaria por todo o apartamento. Não tardaria até que este cheiro se espalhasse pelo prédio, as ruas, a cidade e quiçá por todo o mundo (não se deve subestimar o poder de uma flor, sobretudo se colhida num sonho). Imaginou que em breve algum vizinho insone bateria a sua porta procurando pela fonte dessa emanação. E o que diria quando lhe perguntassem de onde surgira tal espécime? Acaso alguém acreditaria nele se contasse o modo como tinha vindo ao mundo?
 

Súbito, ocorreu-lhe que teria de livrar-se dela, antes que o mundo conhecesse sua existência. Não sabia, no entanto, qual era o meio adequado para livrar-se de uma flor colhida num sonho. Pensou que não poderia, simplesmente, atirá-la no lixo (sendo os sonhos e suas derivações parte de quem os sonha, tal ato equivaleria a abandonar-se numa cova).  Logo intuiu que também não poderia desfazê-la. Embora tangível, suspeitava nela algo de imaterial, pois, sendo consubstancial aos sonhos, devia como estes ser indestrutível. Pensando nessas coisas e narcotizado pelo perfume, acabou adormecendo quando já amanhecia. E não sonhou mais com coisa alguma.

Por fim, despertou. Num Jardim.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Vincent



Desperta e é cedo.
Bebe a luz desse sol
que te invade
a janela e os pesadelos.
Procura, talvez a seu lado
ela sonhe contigo,
quem sabe?

Entenda o mundo
é simples e belo.
A vida parece
com essas marinas,
São barcos e sóis.
Mergulha nesta vaga
Esperança que te embriaga.

E mesmo que assim não seja,
sorve a beleza desse momento
de antecipação do Paraíso
que talvez, tu sabes, não haja.

Afaga esta fronte
que em seu peito se deita
antes que os corvos
roubem-te a colheita.