Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Mrs Dalloway

"Mrs Dalloway said she would buy the flowers herself "

Virginia Woolf

Vou eu mesma comprar as flores.
Melhor, vou eu mesma plantá-las.
Lavrar a terra com ferozes dedos
e semear lírios e papoulas.

Vou eu mesma regar as flores,
com meu sangue e seiva e suor.
vou eu mesma ditar-lhes as cores
e delicadamente irei pintá-las.

Vou eu mesma tecer cada flor
com mil cuidados; com mil carícias.
Fazê-las florescer como quem conta
ao mundo a novidade de estar vivo.

E quando fortes, e plenas, e belas,
e quando nelas não mais couber leveza,
hei de cortá-las, hei de colhê-las:
Sou um deus em seu jardim.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Suspiros de Ariène

Vezes muitas a vi estática, o olhar fixo nalgum ponto entre o lá e o aqui: um não-lugar. Suspirante. 
Um dia violentei seu silêncio: "Por que suspiras?"  Com um olhar que me transpassou e um sorriso seco, respondeu-me: "Pelo nada". E interpretei que ela dissesse que não era da minha conta e que eu devia cuidar da minha vida e me retirei, entre desculposo e ofendido. Só depois, quando visitei a lembrança, foi que me dei conta de que ela dissera "pelo nada" e não "por nada", como eu havia entendido a princípio. E que seu olhar não me acusava, mas procurava um cúmplice.
Pelo Nada, eu refleti. O Nada: o silêncio anterior ao Fiat, o vazio de si mesmo vazio, a ausência irreparável, o inominável que precede o verbo e  a esse sobrevive, o que tinge com cor inexistente toda memória e esperança, o pó que irmana os Césares e os vermes e que rotula de vaidade todo o feito humano: o Nada. E me flagrei suspirando, o olhar fixo em um não-lugar.
Prometi a mim mesmo que no dia seguinte, quando a reencontrasse no trabalho, lhe diria que eu a compreendera, e que também me assalta esta vertigem do abismo, e que às vezes, também, me falta ar, e que me  acomete esta ânsia, o branco desespero, a solidão sem acalanto: a perspectiva do Nada. Queria ter lhe dito essas coisas, mas era tarde: ela havia atendido ao chamado do Nada - quiçá irrecusável.