Sobre este Blog

“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

domingo, 7 de maio de 2017

O breve

Projétil contra a vidraça. Estrondo sem estilhaço. Mas o que foi? Abro a janela e vejo, vemos: o corpo emplumado, latejante, mínimo.

É o menino quem mais se apressa. Chega antes, com  um salto. Atrás, sua irmã e eu.

Os três nos inclinamos sobre o corpo ínfimo, frágil e pulsante.

- Mãe, faça alguma coisa.

Há um tom de ordem ou de súplica na voz do pequeno. Ante o trágico que se avizinha, só consigo pensar que perdoar é preciso. Perdoar-lhe por ter sete anos e por crer na minha onipotência. Perdoar-me por nada poder contra a obscura foice.

- Afastem-se. Peço.

Contemplamos. As penas negras do dorso contrastantes com o branco de alabastro do ventre. Os olhos também negros, minúsculos, dois grãos burilados, cobiçando o azul impossível do céu. As asas semiabertas voando agônicas no chão de concreto. A respiração em ligeiros saltos. A vida se dissipando pelos artelhos trêmulos. Solidários, inspiramos o ar rarefeito na mesma cadência do pássaro.

- Ele está morrendo, mãe?

É a menina agora, subitamente arrancada de sua gasta indiferença. Pede-me a confirmação do óbvio, mas não encontro vocábulo com que lhe diga a banalíssima verdade: estamos todos. Mas a morte, em tudo diluída, fecha agora seus dedos em torno no corpúsculo da ave.

O menino é o primeiro quem chora, descampado. Passo o braço direito ao redor do seu ombro e o trago para junto de mim. Também tenho os olhos baços. Última a render-se, a menina me abraça, em busca de sua cota de consolo. Embora impotente, os tenho aninhados, como se pudesse protegê-los do fúnebre espetáculo: o diminuto peito emplumado enchendo-se de ar uma última vez e, lentamente, libertando-se, ritualizando o triste desfecho.

Tudo está concluído.

O mundo nos desimporta. O pássaro, é tudo o que há . Nossos pensamentos são dele. Dele, nossos sentimentos. Ele cresce-nos em importância, domina com microscópica soberba cada fiapo de nossas mentes. Aninha-se pleno em nossos corações. Ensaio mentalmente um discurso mortuário que lhe minta uma existência mais alegre: ainda pela manhã o vi rondar a parreira, cantando! Em respeito, desisto da ficção. A verdade é que apenas o conhecemos em sua decadência, quando a vida já lhe escapava pelos minúsculos dedos em forma forquilha.

Os irmãos ainda aguardam um milagre quando me desprendo do simétrico abraço. Alguém tem de ocupar-se do funeral. Entre o formão e a tesoura de poda, encontro os instrumentos para o impiedoso ofício. Cavo entre as begônias um fosso, sepultura de barro. E no fundo da terra semeio esse corpo ao ar destinado. O rito é breve e silencioso.

Doravante, poderei dizer, mas não digo: há um corpo velado em meu jardim.

O instante é outro, a menina tem pressa: imagens pixeladas a aguardam. Ficamos eu e o menor, um pouco mais, como se nada houvesse na galáxia que nos merecesse.

- Mãe, morrer dói?

Embora a pergunta me retalhe, respondo sem sangrar:

- Dói. Mas passa.
...

Flores encarnadas desabrocham, indiferentes ao corpo que sob elas apodrece. Na janela, uma minúscula fissura, imperceptível quase. Isso e a memória testemunham contra a insignificância do pássaro que nos fulgurou um dia.