Projétil contra a vidraça. Estrondo sem estilhaço. Mas o que
foi? Abro a janela e vejo, vemos: o corpo emplumado, latejante, mínimo.
É o menino quem mais se apressa. Chega antes, com um salto. Atrás, sua irmã e eu.
Os três nos inclinamos sobre o corpo ínfimo, frágil e pulsante.
- Mãe, faça alguma coisa.
Há um tom de ordem ou de súplica na voz do pequeno. Ante o trágico que se avizinha, só consigo pensar que perdoar é preciso.
Perdoar-lhe por ter sete anos e por crer na minha onipotência.
Perdoar-me por nada poder contra a obscura foice.
- Afastem-se. Peço.
Contemplamos. As penas negras do dorso contrastantes com o branco de
alabastro do ventre. Os olhos também negros, minúsculos, dois grãos burilados, cobiçando o azul impossível do céu. As asas
semiabertas voando agônicas no chão de concreto. A respiração em ligeiros saltos. A vida se dissipando pelos artelhos trêmulos.
Solidários, inspiramos o ar rarefeito na mesma cadência do pássaro.
- Ele está morrendo, mãe?
É a menina agora, subitamente arrancada de sua gasta indiferença.
Pede-me a confirmação do óbvio, mas não encontro vocábulo com
que lhe diga a banalíssima verdade: estamos todos. Mas a
morte, em tudo diluída, fecha agora seus dedos em torno no corpúsculo da ave.
O menino é o primeiro quem chora, descampado. Passo o braço direito ao redor
do seu ombro e o trago para junto de mim. Também tenho os olhos
baços. Última a render-se, a menina me abraça, em busca de sua cota
de consolo. Embora impotente, os tenho aninhados,
como se pudesse protegê-los do fúnebre espetáculo: o diminuto
peito emplumado enchendo-se de ar uma última vez e, lentamente,
libertando-se, ritualizando o triste desfecho.
Tudo está concluído.
Tudo está concluído.
O mundo nos desimporta. O pássaro, é tudo o que há . Nossos pensamentos
são dele. Dele, nossos sentimentos. Ele cresce-nos em
importância, domina com microscópica soberba cada fiapo de nossas
mentes. Aninha-se pleno em nossos corações. Ensaio mentalmente um discurso mortuário que lhe minta uma
existência mais alegre: ainda pela manhã o vi rondar a parreira,
cantando! Em respeito, desisto da ficção. A verdade é que apenas o conhecemos em sua
decadência, quando a vida já lhe escapava pelos minúsculos dedos
em forma forquilha.
Os irmãos ainda aguardam um milagre quando me desprendo do
simétrico abraço. Alguém tem de ocupar-se do funeral. Entre o
formão e a tesoura de poda, encontro os instrumentos para o
impiedoso ofício. Cavo entre as begônias um fosso, sepultura de
barro. E no fundo da terra semeio esse corpo ao ar destinado. O rito
é breve e silencioso.
Doravante, poderei dizer, mas não digo: há um corpo velado em meu jardim.
Doravante, poderei dizer, mas não digo: há um corpo velado em meu jardim.
O instante é outro, a menina tem pressa: imagens pixeladas a aguardam. Ficamos eu e o
menor, um pouco mais, como se nada houvesse na galáxia que nos
merecesse.
- Mãe, morrer dói?
Embora a pergunta me retalhe, respondo sem sangrar:
- Dói. Mas passa.
...
Flores encarnadas desabrocham, indiferentes ao corpo que sob elas
apodrece. Na janela, uma minúscula fissura, imperceptível quase.
Isso e a memória testemunham contra a insignificância do pássaro que nos fulgurou um
dia.