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“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

domingo, 30 de janeiro de 2022

O ano do boi



Com estrondosos (mas vacilantes) fogos de artifício celebramos o fim de 2021, como se quiséssemos, à força de seu estampido, acordar de um pesadelo. Já não era sem tempo! suspiramos aliviados, comemorando a mudança de dígito do calendário. Isso porque acreditamos, ou assim queremos, que há cabalísticas repercussões nessa simples troca de algarismos.

Seguem-se inevitáveis reflexões sobre a continuidade ou descontinuidade do tempo. O que de fato termina com o ano que acaba? O que permanecerá dele, como herança ou fardo? E o que nele ficará sepultado, como memória ou esquecimento? Qual a novidade que esperamos que dê sentido ao novo que adjetiva o ano que se inicia? Distraídos por tais perguntas quase nos esquecemos – talvez o façamos de propósito – que a forma como dividimos o tempo é mero artifício contábil. Para lembrá-lo é suficiente recordar que há outros calendários com seus respectivos anos novos a brotar inesperados no meio de nossas agendas. Sem citar o calendário Maia, associado a um fatídico fim do mundo (talvez já concluído), recordemos que o ano 4719 do calendário chinês só acaba em 31 de janeiro de 2022. Para o horóscopo chinês, o ano que começou em 12 de fevereiro de 2021 foi o ano do boi.

Talvez a emblemática imagem-arauto do ano bovino, lá pelos idos de janeiro de 2021, tenha sido a de um dos invasores do Capitólio ornamentado com um par de chifres e o rosto pintado nas cores da bandeira americana, bradando (ou seria berrando?) contra a derrota de Donald Trump. As cenas da invasão da sede do congresso americano tinham qualquer coisa grotesca desses filmes catástrofe tão ao gosto de Hollywood (com provável alusão apocalíptica ao calendário Maia, devidamente recalibrado). Parecia mentira, mas era verdade. E foi entre verdades que pareciam mentiras e mentiras veiculadas como verdades que andamos às cabeceadas neste ano taurino.

Não foi o fake boi da cara preta da cantilena de ninar (ou de aterrar) que nos perturbou o sono nesse ano. Quem frequentou nossos pesadelos foi de novo a Covid, metamórfica como os deuses da Grécia antiga onde foi buscar signos com que batizar suas novas formas. Bebeu no alfabeto grego, parindo a variante alfa, letra que aliás deriva do fenício onde sua equivalente representa iconicamente uma cabeça de touro. Outras variantes desfilaram em nosso pesadelo – beta, gama, delta... ômicron – um rebanho inteiro em massacrante marcha.

E por falar em pesadelo, lembremos o daquele faraó narrado no Gênesis  (o livro, não o folhetim). Sete vacas gordas devoradas por sete vacas magras. A fábula bíblica nos conta que o governante consultou o maior especialista na matéria, um tal José, que corretamente decifrou o significado do presságio: sete anos de fartura sucedidos por igual período de escassez. Confiando na palavra do especialista, o faraó encarregou José de tomar as providências necessárias contra a carestia vindoura, o que fez com que o reino atravessasse, sem maiores sobressaltos, os tempos de penúria. Menos sorte tivemos nós, às voltas com um presidente negando a óbvia verdade proclamada em coro pelos especialistas. Negando ou negaceando? Diz o Houaiss que negacear é valer-se de “artifício com que se ilude alguém; falsa promessa, mostra ilusória; engano, logro, estratagema.” E agora, José?

Ruminando falsas notícias, assistimos (pretérito perfeito e presente do indicativo) aos estragos desse discurso obscurantista repetido por um séquito ruidoso, pejorativa ou apropriadamente rotulado como gado. De seu cercadinho (ou seria curral?) mesmerizado pela voz do capitão como se cantasse obediente: “Toca o berrante, seu moço, que é eu pra eu ficar ouvindo”, como na letra de certa música imortalizada pelo octogenário ex-deputado federal que ganhou as manchetes no ano findo por incitar uma invasão do Supremo Tribunal Federal.

Mas voltemos à vaca fria; ou às vacas magras que andaram à solta pelo país. Um espantoso aumento do desemprego e da miséria nos relegou a indigesta e emblemática imagem de uma fila de pessoas disputando ossos. O país voltou ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas. Enquanto isso, num outro Brasil, a estátua de um Touro Dourado, que bem poderia ter sido o bezerro de ouro citado em outra parte da Bíblia, foi inaugurada para adoração pública em frente ao prédio da B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Num ano de economia minguante e miséria crescente, a estátua celebrativa tinha qualquer coisa de lunática. Não demorou para que a escultura de Rafael Brancatelli, inspirada pelo touro de bronze que orna a entrada da bolsa de Wall Street fosse retirada da rua XV de novembro. Em seu lugar, por um breve período, desfilou a instalação batizada de “Vaca Magra”, da artista plástica Márcia Pinheiro.

Nesse ano do boi quem seguiu em desabalada carreira foi o projeto antiecológico anunciado pelo agora ex-ministro do Meio Ambiente: uma boiada inteira pisoteando e fazendo de pasto a legislação ambiental e os biomas do país. Aliás, o patrocínio de um banco privado a uma iniciativa global denominada Segunda sem Carne, cujo objetivo é conscientizar sobre o impacto ecológico da pecuária e incentivar a redução de consumo do alimento, levou criadores de gado e de caso, em protesto, à porta de agências do aludido banco. Os manifestantes enfurecidos defenderam o consumo da carne bovina “de segunda a segunda”, parecendo ignorar que a substancial redução do alimento no prato dos brasileiros não teve a ver com uma consciência ecológica insuflada pela publicidade oportunista e sim com o fato de a economia pátria, como a vaca, ter ido para o brejo.

Para completar nosso périplo, voltemos aos astros para lembrar que quem recentemente foi comer grama pela raiz não foi outro senão o astrólogo, ideólogo e guru do bolsonarismo (ou seria boisonarismo?) Olavo de Carvalho, aliás um taurino. 

E esse foi o ano do boi. Foi? Será que acabou de verdade? Ou continua? E, afinal, quando começou? E quando poderemos dá-lo por encerrado? – nos perguntamos ansiosos, enquanto, placidamente, Um boi vê os homens:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade. [1]


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[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Um boi vê os homens. In: ______. Nova Reunião: 23 livros de poesia. 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 223-224. 


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