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“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim. (...)
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última”.

Jorge Luís Borges, O Livro de Areia

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Antônia, ou as formas da saudade




O que vai com quem se vai? E o que permanece? Essa pergunta – dolorosa e indigesta – sempre nos ocorre quando nos despedimos de alguém a quem amamos. Há poucos dias, nos despedimos de dona Antônia, a vovó Tonha que nos deixou aos 88 anos. Os filhos, netos e bisnetos somos parte do que fica: seus descendentes. Para o adeus, estávamos lá, meio incrédulos da morte, mesmo cientes de que sua saúde se deteriorava; mesmo sabendo do risco da cirurgia – no entanto, inevitável – pois esperávamos que ela, miraculosamente, nos surpreendesse, como de outras vezes. Mas o coração, cansado, dessa vez não resistiu.

Conversar com ela era visitar uma época em que as coisas eram tanto mais simples quanto mais difíceis. As longas jornadas a cavalo para ir até a cidade eram sempre objeto de relatos minuciosos ou então os trabalhos árduos na fazenda, compensados por quitandas e doces que eram guardados em enormes balaios e tachos cujas dimensões ela frisava com um gestual todo dela: um grande arco com os braços abertos e os olhos arregalados, seu modo de ênfase.

Ficam essas histórias, muitas que ela repetia e repetia: as lembranças da menina e moça, filha caçula de fazendeiro abastado que ia para a casa das irmãs mais velhas, sob o pretexto de ajudá-las com seus filhos recém-nascidos, para poder frequentar, escondida da mãe bravíssima, os bailes da época (sua nota de rebeldia). Falava orgulhosa do par de brincos de ouro que ela herdou dessa mãe (e que usou até o fim) e dos belos e longos cabelos, muito pretos, usualmente trançados – hidratados a banha de porco! – objeto de inveja das cunhadas que diziam que ela devia cortá-los: “Não seja boba. O que você tem elas não têm. As orelhas furadas e esses cabelos que ainda matam um!” – flertava um vizinho e ela contava e ria-se. Depois de casada, ela efetivamente cortou aquelas longas tranças, mas as manteve guardadas numa caixa por anos, até que um dia meu avô as vendeu: haviam ficado para trás os tempos de fartura. Foi por essa época que ela passou a costurar para ajudar a criar os nove filhos. E ela apontava para a velha máquina de costura e contava dos muitos vestidos, coloridos e rodados, que ela fez para as ciganas que vinham em fila à porta de sua casa.

Mas seria engano dizer que ela vivia no passado. Jamais perdeu a invejável lucidez, nem mesmo em meio a grande dor, como quando meu avô faleceu, ou, bem mais recentemente, quando ela perdeu dois filhos em um intervalo de poucos meses. Só se queixava, às vezes, de uma tristeza que ela mal sabia nomear: “Parece que tem uma água empoçada na minha cabeça.” E nós, engasgados, dizíamos que ela podia chorar, que ela devia, como se houvesse suficiente choro para escoar essa dor ali estancada. E às vezes ela chorava. Discretamente, como sempre viveu.

Vovó Tonha sabia do rumo de cada um dos netos e bisnetos, pedia notícias e rezava por nós os seus terços diários. Também gostava de assistir ao jornal, mas apenas para ver a previsão do tempo, como se a coisa mais importante do mundo fosse saber se choveria ou não no dia seguinte. Perdeu esse interesse nas últimas semanas. Talvez fosse um presságio.

Mas, das suas histórias, a minha favorita era a de quando ela acreditou que havia chegado o fim dos tempos. Estavam na roça, ela e os empregados da fazenda, quando ouviram trombetas e viram uma cruz rasgando os céus. Prostraram-se de joelhos, entre choro e preces. Foi a primeira vez que viram um avião. Ela contava e ria, porque, afinal, o mundo não havia acabado naquele dia. Ou será que havia – me pergunto. Afinal, o mundo dela e o nosso, não estão sempre acabando, um pouco a cada dia? Não é isso que se perde, a vida que se escorre, com o mudar das coisas?

A vida, o que é, quando termina? É talvez como aquele par de tranças que um dia faz parte da gente, no outro a gente traz guardado numa caixa, como souvenir e prova do que já fomos, e no dia seguinte se perde para sempre… Mas, disso que se perdeu, não fica algo para o sempre dos tempos, sob a forma da memória? E ao transformar lembrança em palavra não damos permanência ao que se foi?

“Dinho, a bisa foi pro céu, mas a alegria dela ficou, né?” Minha sobrinha de cinco anos, me pergunta, tentando entender o que também eu não entendo: na morte, o que se vai e o que permanece. Tentando entender, ou me ensinar, não sei. É isso. A alegria dela fica. E a alegria dela eram essas histórias, que traremos conosco, como um pedaço inestimável dela vivendo na gente. Inestimável, aliás, é o significado do nome Antônia.

A bênção vó! Vá com Deus!




Sofrimento


Henriqueta Lisboa

No oceano integra-se (bem pouco)

uma pedra de sal.

Ficou o espírito, mais livre
que o corpo.

A música, muito além
do instrumento.

Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso,

Ficou o selo, o remate
da obra.

A luz que sobrevive à estrela
e é sua coroa.

O maravilhoso. O imortal.

O que se perdeu foi pouco.

Mas era o que eu mais amava.


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LISBOA, Henriqueta. Flor da Morte. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

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